sábado, 24 de janeiro de 2009

Uma visão "politicamente incorrecta"...

Matem a morte


António Pedro Dores*

Como é que uma manifestação a favor da justiça e da paz, denunciando o assassínio de um jovem de 14 anos por um polícia, pode tornar-se no motivo de um ferimento de uma agente da polícia por um dos manifestantes?


Da mesma maneira que os comentários na Internet às notícias comparavam os traumas desenvolvidos pelos roubos de automóveis com os causados pela morte de um jovem, como se os primeiros justificassem os segundos.


A natureza humana é de uma enorme capacidade de violência. Veja-se o que foi capaz de fazer com o planeta e com as guerras, por exemplo. O que não quer dizer que a natureza humana seja hobbesiana, do todos contra todos. Ao contrário: para sobrevivermos à nossa própria violência precisamos de apoio social dos nossos próximos, daqueles que sejam capazes de nos reconhecer como gente. Com as nossas qualidades e com os nossos defeitos.


A sociedade organiza-se para reconhecer as qualidades (às vezes inexistentes) de alguns – vejam-se, por exemplo, as práticas de auto-elogio dos poderosos para aumentarem o prestígio dos seus grupos de influência – e para salientar os defeitos (às vezes induzidos pelas profecias que se auto-realizam) de outros – os excluídos.


O Estado, esse, informado pelas doutrinas políticas e de direito, tem obrigações de civilização: não discriminar, defender os direitos humanos, assegurar acesso ao Direito, assegurar a liberdade de expressão, etc. Porque o Estado é bonzinho? Não, pelo contrário: porque o Estado depende da capacidade que tenha de pacificar a sociedade. Quando não cumpre essa função perde a legitimidade e a justificação da sua própria existência – bem lucrativa, como se sabe, para os seus beneficiários – e arrisca-se a ser alvo da violência que não foi capaz de conter.


Um exemplo quotidiano: quem declarou a guerra contra a droga foi o Estado, ou melhor a ONU e o conjunto dos Estados. Desde então um enorme mercado negro emergiu com tentáculos em toda a parte, incluindo nos corredores do poder. Quem não sabe onde se trafica? Porque é que a polícia não acaba com isso? Pura e simplesmente porque não está nas mãos da polícia fazer outra coisa senão perseguir o pequeno traficante que é oferecido à morte e respeitar o grande armazenista com influência corrupta suficiente para não ser apanhado. Nas prisões, onde a maioria dos presos está lá por causa da droga, oferecerem-se as doses que se quiser a quem puder pagar, sem que o Estado se sinta na obrigação de acabar com isso.


Sendo o Estado uma organização de gente, o que faz é auto-elogiar-se em permanência a dizer que faz tudo bem – e quando isso não acontece a culpa é de algum agente descontrolado que há que castigar. Acontece que os castigos previstos são desagradáveis: expulsão da profissão (que é, nas nossas sociedades, o tal apoio social que valoriza as nossas qualidades e minimiza os nossos defeitos, a que os sociólogos chamam identidade) ou até a multa ou a prisão (lugar onde todos os defeitos são valorizados ao extremo). E os amigos, colegas, preferem evitar que isso aconteça por solidariedade e também para impedirem o reconhecimento público de poder haver maldades ou defeitos nos campos sociais onde vivem.


A exclusão decorre do funcionamento social competitivo. Como os gorilas, gostamos de bater no peito sem mácula, atribuindo a outros – que queiram experimentar o mesmo gesto – o carácter provocador. Na verdade, o poder social é relativo e exclusivista. A democracia é, porém, um modo de distribuição do poder. De modo a minimizar a violência interna das sociedades e prolongar a estabilidade do poder e a segurança dos detentores do aparelho de Estado.
Qualquer manifestação, seja ela de professores ou de jovens, é sempre um risco para os poderosos. Mas também é uma necessidade para os manifestantes. O que acontece a seguir às manifestações (“Nós é que ficamos aqui!” – gritavam os jovens locais contra um partidário da partir para a violência) é sempre imprevisível. Todos os professores na rua, por si só, não fizeram recuar o governo – pelo menos no imediato. Seria coerente uma manifestação pela justiça e pela paz não ser causa de ferimentos, em especial em agentes da autoridade acusados de serem, eles próprios, abusadores da violência legítima. Os resultados, porém, decorrerão da capacidade de encaixe das partes envolvidas nos acontecimentos.



O que se viu na manifestação foi a reacção agressiva dos manifestantes ter-se dirigido contra a pose de suave confrontação de quatro polícias na portaria da esquadra, substituída depois do ferimento da agente de polícia pela simples presença (descontraída) do chefe da esquadra junto das grades, em diálogo com alguns jovens, à margem da manifestação.


A polícia, a menos que seja radicalmente incompetente, teria de ter informações seguras sobre o carácter e âmbito da manifestação: os jovens dos chamados bairros problemáticos estão fartos – e ainda bem para eles e para nós – de serem enxovalhados: de verem as suas características transformadas em defeitos (nomeada e simbolicamente a cor da pele) e os defeitos transformados em identidade colectiva. Pretendem – que bom! – reconstruir a sua identidade social, transformando-a numa boa marca, como agora se diz, à luz de exercícios já realizados a pretextos diversos (a Zona J tornou-se um mito do cinema português e a Cova da Moura tornou-se num percurso turístico).


Ao Estado, por seu lado, caberá afirmar a democracia: assegurar o direito de manifestação, a liberdade de expressão e reconhecer o diálogo como forma privilegiada de acomodar a emergência de novas identidades – de boas identidades – na sociedade portuguesa.
Há aqui riscos para o poder? A vida é um risco para o poder. Também para as crianças, como se viu no caso do jovem abatido. Agora os riscos podem ser maximizados, como quando os polícias se ofereceram aos manifestantes como alvos, em vez de dialogarem com eles ou de, como é normal noutras manifestações, organizarem a segurança da manifestação e assegurarem a liberdade de expressão.



Não, não. A responsabilidade da pedrada e do ferimento da polícia é da manifestação e do manifestante em concreto que lançou a pedra. Do mesmo modo que o assassinato do Kuku (do Angoi, do Tony, do PTB, do Tete, do Corvo) deve ser assumido por quem de direito. Não na lógica do roubo de carro pela vida de quem possa estar próximo dos culpados, mas na lógica de dar nomes positivos a jovens traquinas, rebeldes, provocadores, desorganizados, que só diferem dos filhos das classes dominantes por serem excluídos nas escolas, nos locais de residência, no acesso ao emprego, no acesso aos centros de diversão comercial, da imagem púbica sobre o que é a vida em Portugal actualmente.

*Sociólogo, Professor Universitário

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